Esta não é a primeira e não será a última vez que tal é constatado e confirmado, aqui neste espaço e não só: o Terramoto de Lisboa em 1755 tem sido e será sempre pretexto, motivo, inspiração para inumeráveis trabalhos científicos e culturais. Um dos mais recentes, e até mesmo talvez o mais recente, foi editado neste ano de 2022, em Fevereiro: o romance «Ressurrecta», de Vic Echegoyen – espanhola de ascendência húngara, jornalista, ficcionista, tradutora.
Em entrevista concedida ao Diário de Notícias, conduzida por João Céu e Silva e publicada no passado dia 14 de Fevereiro, a escritora revelou qual a origem desta sua obra, o que nela pode ser encontrado de novo, em que é que ela se distingue de outros trabalhos narrativos com o mesmo tema: «(…) Quando, por exemplo, estava no Convento do Carmo e vi as ruínas do que teria sido uma obra maravilhosa, construída com tanto esforço e que foi abaixo em poucos minutos. É impossível não nos sentirmos insignificantes e vulneráveis naquele lugar. Fiquei emocionada e não pude evitar uma necessidade de falar do terramoto, bem como de quem estaria no edifício naquele dia, como viviam, como reagiram, e como podemos vivenciar os momentos de há 250 anos que nos continuam a marcar. Então, imaginei o que poderiam contar os personagens daquela tragédia e foi então que decidi dar a cada uma delas um minuto para contar a sua história. Era essa a forma como queria recordar o terramoto. (…) É difícil escolher qual a (personagem) mais importante, pois cada um traz um contributo pessoal, mas se for obrigada a escolher optaria por Carlos Mardel. Estava cá há muitos anos ao serviço do rei e do exército e tinha uma perspectiva dupla: europeia iluminista e também já portuguesa. Não foi por acaso que o investiguei com mais atenção, até porque ele é meu compatriota pelo lado húngaro e assim tornou-se uma entre todas as personagens com que me confrontei por tudo aquilo que lhe permitiram construir no país. (…) Há uma outra história que considero como um modelo, a do general Manuel da Maia que está em casa e olha para a destruição do castelo de São Jorge, onde estava a Torre do Tombo, e sente que é o fim da obra de toda a sua vida. Então, ele, que tinha 80 anos, percorre a distância a pé, atravessou toda a Baixa em ruínas, subiu ao castelo e organizou os soldados que ali estavam de forma a salvar a memória da cidade e à qual tinha dedicado tanto tempo da sua vida. (…)»
Muito interessante também, e compreensivelmente, é a alusão à grandiosa «Casa da Música» que então existia em Lisboa, feita logo no início do romance – veja-se e leia-se as páginas 18 e 19 da edição portuguesa, a cargo da Suma de Letras, uma chancela da Penguin Random House Portugal:
«A um minuto a pé do cais, atravessando o Terreiro do Paço em direcção a poente, um martelar que não parou toda a noite e continua, apesar de ser sábado de festa, ressoa no interior de um colosso de sete andares de mármore, com abóbadas pintadas com frescos e colunas revestidas de ouro. É a Ópera do Tejo, inaugurada há exactamente sete meses: é o coração do reino, como a Patriarcal é a sua alma e o paço, a sua cabeça. El-rei, melómano e mecenas, graças ao maná de ouro que flui das colónias, não olhou a meios para edificar este templo às musas e, desde então, virtuosos e divos orbitam em redor de Lisboa como antes o fizeram em Madrid, Nápoles ou Paris. Dentro de três dias, estrear-se-á “Antígono”, uma fantasia de vingança e paixão na Antiguidade, escrita por Metastasio, à qual assistirá toda a corte. Como uma criança que quer saber que presentes receberá no Natal, el-rei espiou um ensaio uns dias antes, escondido atrás da cortina de um camarote, enquanto os músicos fingiam ignorar a sua presença. Os nervos estão à flor da pele, e as disputas ecoam no fosso da orquestra, onde o compositor, Antonio Mazzoni, se envolve numa altercação com o director, David Perez, ao ritmo de uma fuga. Entretanto, o arquitecto do teatro e cenógrafo, Giovanni da Bibiena, dirige os contra-regras que montam a acrópole do rei da Macedónia; no palco, o tenor Gregorio Babbi enfia a sua silhueta de dançarino numa couraça de folha-de-flandres. — Que fazeis aqui, meu senhor? Julgava-vos a cantar em Santarém — surpreende-se Perez ao ver entrar o castrato Caffarelli, a voz de Deus para os seus adoradores e o caprichoso para os músicos que lhe aturam as birras. Desta vez, o divo canta no papel de um protagonista, Demetrio. — Também eu, mas acordei com preguiça — responde este, erguendo os ombros de atleta e puxando para trás a juba: sem mais delongas, começa a aquecer a voz, improvisando variações sobre uma ária que fazem brotar lágrimas de êxtase aos presentes. Depressa se lhe juntam os gorgolejos de outro castrato. — Ah não, Luciani! Outra nota em falso e, embora sejais a estrela, juro que vos darei tamanha tareia que só conseguireis cantar com as sardinheiras do mercado. Domenico Luciani, que interpreta a princesa Berenice, atira-lhe a partitura à cabeça. E assim, entre remoques e blasfémias, desatam a afinar todas as tessituras de voz de varão, desde o baixo até aos castrati de coloratura, pois nenhuma mulher pode pisar o palco como cantora, dançarina ou música; apenas meninos ou actores podem representar ninfas e pastoras. Tem sido sempre assim, e assim será, enquanto existir a Ópera do Tejo.»