«Ao aproximarem-se, todos os coches, incluindo o que levava William Beckford e Manuel Maria du Bocage, pareciam ser atraídos por uma imensa e irresistível força gravitacional. Os veículos, provenientes de todas as ruas em redor do enorme e esplendoroso edifício, giravam em sua volta quais pequenos satélites em torno de um astro muito, muito, muito grande. O crepúsculo que entretanto começara, fazendo acentuar mais as cores branca e dourada daquele secular templo erigido em honra e glória da arte e do entretenimento, conspirava com os sentidos e as emoções para diminuir a ténue distância entre a realidade e a fantasia.
O Teatro Real do Paço da Ribeira, mais conhecido como Ópera do Tejo por se situar junto ao oceano com o mesmo nome que banha Lisboa, era famoso não só no sistema solar Europa mas em toda a galáxia Terra como a maior, melhor e mais bela casa da música. Projectada pelo italiano Giovanni Carlo Bibiena e inaugurada somente sete meses antes, em Abril, fora quase completamente destruída pelo terramoto e chegou a recear-se que tivesse sido como um cometa, uma estrela cadente, que brilhara intensa mas brevemente. Mas não: a sua reedificação fora considerada prioritária… e os últimos retoques haviam sido dados apenas uma hora antes; ainda se viam autómatos-operários a proceder às derradeiras verificações. A sua excelência, evidente nas dimensões exageradas, nos luxos ostensivos e nas tecnologias avançadas, limitava-se a reflectir a predilecção do povo daquele planeta pelo culto dos sons. (…)
Nesta, pode dizer-se, segunda inauguração, não se tinham poupado esforços nem despesas para tornar o momento, lá dentro, o mais memorável possível. Mas cá fora o ambiente também era de efusiva festa: estava a ocorrer uma rara – embora involuntária – confluência de classes sociais, que se misturavam sem se confundirem. Das dezenas de coches, que sucessivamente iam parando à entrada principal do teatro, saíam as famílias ricas, influentes e elegantes, as representantes da mais antiga e fina nobreza de Lisboa e de Portugal, e ainda várias estrangeiras, igualmente afluentes, e residentes neste planeta, ligadas ao comércio, às embaixadas e não só, e muitos outros forasteiros que haviam vindo a esta capital especificamente para esta ocasião – porque eram amantes da música ou porque eram exibicionistas adoradores da moda que esperavam ter as suas imagens reproduzidas em todas as colunas cósmicas. Ao subirem as escadas que davam acesso ao interior do edifício, eram rodeados pelos melómanos das classes média e baixa, que queriam ver de perto aqueles que invejavam. Porém, e como seria de esperar, não faltavam, bem colocados e dissimulados entre a multidão, diversos polícias enviados por Pina Manique como prevenção… (…)
O milionário e o poeta, tal como os restantes privilegiados, lá conseguiam, com maior ou menor dificuldade, passar e penetrar através do resplandecente portal que, para muitos, era como uma porta para um paraíso prematuro… aquele do deslumbramento pela imaginação humana. Uma vez dentro, o difícil era não expressar o encantamento pelos interiores do teatro, que já se adivinhavam do exterior, e que eram o resultado do trabalho dos artificies com maior erudição e das máquinas com maior precisão. A Ópera do Tejo podia dividir-se em três áreas principais: o átrio, que era um enorme, confortável e polivalente espaço de convívio; os ateliers, salas equipadas com uma quase infinita variedade de instrumentos e equipamentos musicais, colocados à disposição dos amadores e dos profissionais para distracção, exercício e/ou gravação antes, durante – nos intervalos – e depois dos espectáculos; e o anfiteatro… do teatro, autêntica nave de uma catedral consagrada à criatividade, com os camarotes, a plateia e o palco mais próximos da perfeição que se podia conceber. E, naturalmente, em todo o edifício continuamente se espalhava, como fragrância em frequência modulada, os sons de música, ao vivo ou gravada, de diferentes composições e em diversos estilos.
Beckford não conseguia, nem queria, esconder o estado de felicidade, quase de beatitude, em que se encontrava; era como se estivesse na sua verdadeira casa, no seu autêntico lar espiritual. (…)»
(Excertos do Capítulo 4, «Etéreas flores», do livro «Espíritos das Luzes», de Octávio dos Santos – Gailivro, 2009)